Os quadrinhos de Hellboy, criados por Mike Mignola em 1993, não são exatamente um sucesso arrebatador de público. Claro, vendem bem para os padrões da Dark Horse, sua editora nos Estados Unidos, mas estão longe do patamar dos super-heróis da Marvel e DC Comics.
Numa analogia com o cinema, heróis dos quadrinhos como Batman, Homem-Aranha, X-Men e Superman, personagens das duas principais editoras dos EUA, são os filmes arrasa-quarteirão de verão (e, não por acaso, ganham adaptações desse gênero). Já Hellboy, com uma pegada mais autoral e artística, é algo que se aproxima de projetos como O Labirinto do Fauno. Faz um bom dinheiro ao seu criador, é reconhecido pela crítica, disputa (e ganha) prêmios, mas não vai brigar de igual pra igual com Batman. Não tem como.
É curioso então que no mundo bizarro de Hollywood exista uma sucessão tão grande de erros em torno da estratégia cinematográfica deste Hellboy II: O Exército Dourado (Hellboy II: The Golden Army), segundo filme da série.
Acompanhe: O diretor é justamente o mesmo de O Labirinto do Fauno, Guillermo del Toro, que trabalhou ombro a ombro com Mignola na criação desta série no cinema. O primeiro filme já não havia sido um sucesso tão grande, pois apostou numa transformação de Hellboy no super-herói que ele não é (não adianta, Hellboy é um demônio, não um adolescente colegial superpoderoso – a relação entre personagem e público é difícil). Então, por que repetir os mesmos erros? Por que tentar adequar uma série originalíssima a uma fórmula mais fácil, tentando transformar a série no próximo Homens de Preto? E, pior, colocá-la pra brigar com Batman nas bilheterias?
Hellboy funcionaria melhor um pouco mais contido. Mignola é conhecido pela construção de clima, não pelas grandes cenas épicas. Del Toro idem. Então parece que ambos ficaram um tanto iludidos com o potencial da série. E tome monstros colossais, mercados com centenas de criaturas, exércitos com 70 vezes 70 soldados, ação vertiginosa… Não precisava de tanto.
Claro, dá gosto ver o trabalho de Del Toro. O cineasta é um virtuoso visual desde os pequenos detalhes (observe a intrincada coroa do reino das fadas) às cuidadosamente orquestradas cenas de pancadaria. Nesse aspecto, Hellboy é irretocável. E se deixei Mignola de lado aqui é simplesmente porque o quadrinista ficou mesmo de escanteio nesta continuação. O design é todo Del Toro e se parece mais com o já citado O Labirinto do Fauno do que com o trabalho do ilustrador e roteirista.
Outro aspecto que acredito que poderia ser melhor trabalhado é o próprio Hellboy. A interpretação de Ron Perlman está ainda mais “indestrutível” que a do primeiro filme. É como se o herói estivesse ainda mais convencido e seguro de si – tanto fisica quanto psicologicamente. Ele ficou com a mocinha, Liz (Selma Blair) e encara monstros de qualquer tamanho. Faltam à versão do cinema alguns lados mais humanos do demônio (por mais estranha que esta frase tenha ficado), ainda que Del Toro tenha colocado no filme algumas cenas românticas divertidas, como a da bebedeira regada a Barry Manilow. Mas humanizar não é só colocar dores de amor. Felizmente, no terceiro ato esses aspectos começam a surgir, como o sentimento de inadequação e a dúvida do herói se ele está do lado certo. Esse é melhor momento do filme, um aspecto do longa até politizado e dentro de todas as discussões mais relevantes sobre meio-ambiente e sociedade – sem cair na chatice. Com o desfecho, a impressão clara é que o cineasta está guardando o melhor para o final, Hellboy III, que periga não acontecer já que o filme, como o primeiro, não foi um grande sucesso de bilheteria.
De qualquer maneira, minhas ressalvas são mera chatice de fã, admito. As falhas de Hellboy II: O Exército Dourado são defeitos apenas para quem conhece bem os quadrinhos. A tentativa de aproximá-lo do grande público é honesta, os valores de produção são altíssimos e a estrutura funciona dentro das pretensões da aventura. Os novos personagens, o ectoplásmico alívio cômico Johann Krauss (voz de Seth McFarlane) e o orgulhoso vilão Príncipe Nuada (Luke Goss) são ótimos e a trama, um ataque do mundo das fadas ao nosso, ainda que não tenha contraparte nos quadrinhos, é empolgante. Mesmo que seja uma versão mais brilhante e empolgada das HQs, Hellboy migra às telas muito acima da média das adaptações da nona arte. Só reclamo – e aqui cabe um desabafo – porque queria dar nota máxima ao filme.